I
O meu nome é Pirilampo e sou um cachorrinho pequinês.
Sei que você que está lendo esta história deve estar achando muito estranho um cachorro contar uma história. Acontece que os animais são capazes de muitas coisas que o homem desconhece. Somos muito inteligentes, mas de uma maneira diferente dos seres humanos.
Eu resolvi contar esta história, porque descobri que todo ser tem uma história própria e algo interessante para narrar. Não é preciso morar em uma fazenda ou viajar para um país distante para viver histórias curiosas ou experiências importantes. Basta estar vivo e prestar atenção em tudo à nossa volta para descobrir como acontecem coisas diferentes a toda hora.
Você com certeza deve se lembrar de coisas que aconteceram na sua vida, que te deixaram muito feliz, ou muito triste. Você pode não ter dado importância a elas e até esquecido, mas elas fazem parte da tua história. E histórias da sua família? Você já ouviu algum parente contar sobre ele ou sobre pessoas da família, quem sabe de pessoas que já morreram, histórias únicas, umas engraçadas, outras tristes? Você prestou atenção a elas? Quando a gente não dá atenção à história dos outros, estamos perdendo uma grande oportunidade de aprender alguma coisa sobre a vida que poderão nos ser úteis no futuro. Converse com as pessoas mais velhas da sua família e peça que contem acontecimentos de seus antepassados. Você vai ver que legal vai ser conhecer a história da sua família, que ajudam você a se conhecer melhor e entender muitas coisas da tua vida.
Mas vamos voltar à história que eu quero contar.
Eu vim morar nesta casa quando era ainda um bebê-cachorro, um filhotinho, como vocês humanos dizem. Na verdade, eu nem me lembro quando cheguei aqui, mas o Tico, que é muito meu amigo, me contou uma história muito bonita passada com ele e que termina quando eu cheguei.
II
Certa vez, o pai do Tico levou toda a família para conhecer a nova casa que havia comprado. Era uma casa pequena e toda pintada de branco, igualzinha a todas as outras casas do bairro. Não era a mais bonita do mundo, mas era a primeira casa que ele tinha conseguido comprar, pois até então a família morava numa casa alugada e todos os meses precisava dar um dinheiro aos donos para morarem lá.
A mãe do Tico e a mãe do pai do Tico, que todo mundo chama de Vovó, entraram logo na casa para ver quantos cômodos tinham e conversaram como arrumar os móveis da casa antiga naquela nova. O Tico e a Bebel, a irmã do Tico, corriam em volta da casa, procurando alguma novidade para contar à família. Pararam quando o pai apareceu na porta da cozinha, que dava para o quintal, falando com a esposa e a mãe:
− Agora venham conhecer o quintal!
− Não é muito grande – disse a Vovó. – Mas não tem problema. O importante é que as crianças terão algo para herdar de vocês. Nos tempos de hoje, quem tem casa tem tudo. Vocês viram, por onde passamos, quantas pessoas morando na rua? É muito triste! Famílias inteiras, com crianças! O que será delas no futuro?
− É verdade, Vovó! – disse a Mamãe. – Parece um sonho que, depois de tantos anos pagando aluguel, conseguimos comprar nossa casinha. Nem pensei que isso ia acontecer tão cedo.
− A casa ainda não é nossa, já que temos muitos anos de prestações a pagar – alertou Papai, mas no fundo do coração concordando com a esposa, pois o dinheiro que pagariam, diferente do aluguel, faria com que um dia a casa pertencesse a eles.
− Quando a gente vai mudar pra cá? – perguntou Bebel.
− Na semana que vem. – respondeu Papai.
− Não podemos nos esquecer de fazer certas melhorias na casa! – falou Mamãe.
− Calma, querida, ainda temos muito tempo para pensarmos nisso.
− Vou plantar roseiras no jardim e um pouco daquelas gramas que tem na casa do diretor da escola. Você pode pedir umas mudas para ele quando for dar aulas hoje, afinal, ele nos ofereceu quando fomos visitá-lo, lembra, querido? Além do que ele não vai ter coragem de negar isso ao melhor professor da escola. – falou Mamãe sorrindo.
− Pode deixar que eu peço, querida! – disse Papai, sorrindo para a esposa, colocando sua mão na dela como gesto de carinho.
− O quintal é pequeno, mas vou fazer uma pequena horta naquele canto e no outro, um galinheiro. – disse Vovó, já sonhando com tudo pronto. – Assim, a gente não vai precisar comprar tantas verduras, ovos e frangos. Quando eu era pequena, na casa dos meus pais lá em São Carlos, mamãe plantava verduras e criava galinhas, e alimentava as galinhas com as folhas das verduras que não estavam boas para a salada. Será uma economia muito grande e os alimentos vão ser de melhor qualidade do que esses vendidos por aí, cheios de produtos químicos que só fazem mal à saude. Com essa economia, podemos abrir uma caderneta de poupança para o futuro das crianças. É uma forma de garantir o futuro dos meus “neguinhos”. – e dizendo isso, Vovó abraçou seus netos, dando um beijo em cada um.
Papai começou a rir de tantos planos que a mãe estava fazendo e comentou:
− O quintal é muito pequeno para fazermos horta e galinheiro. Talvez a gente consiga fazer um dos dois.
− A gente pode fazer o galinheiro aqui no quintal e a horta a gente faz no muro, com garrafas de refrigerantes, igual aprendemos na escola.
Vovó agarrou Bebel e lhe deu um beijo barulhento na testa.
− Essa minha neta é muito inteligente. É verdade que o quintal é pequeno, mas é bem maior que o quintal de muitas casas populares que vimos.
− Será que dá para fazer um balanço pra gente? – pergunto o Tico.
− E uma casa de bonecas dessas que dá pra gente entrar dentro? – quis saber Bebel, toda empolgada.
− O balanço – foi dizendo Papai – podemos fazer ao lado do galinheiro, mas a casa de bonecas não dá, pois sairá muito cara e também não temos espaço para ela.
− Então eu não vou ganhar nada! – falou Bebel, com cara de choro.
− O balanço fica para você e o seu irmão. E continue a usar sua antiga casinha que vai ficar no quarto novo.
− Mas ela é muito pequena. Eu não “cabo” dentro dela. – choramingou a menina, embeiçando os lábios.
− Não caibo... – corrigiu Papai.
Ao ver a menina tão triste, Mamãe tentou consolá-la:
− A sua casinha tem uma vantagem, minha filha: você pode levá-la para qualquer lugar, chova ou faça sol. Se Papai construísse uma, você só ia poder brincar no quintal durante o dia, isso se não chovesse ou fizesse muito frio.
− Não se esqueçam que não podemos gastar todo o dinheiro com brincadeiras. Existem coisas importantes com que se preocupar. Ou vocês acham que ferramentas, galinheiros, sementes e frangos são distribuídos de graça? Temos que comprar tudo isso e vamos gastar muito, porque as coisas hoje em dia estão custando os olhos da cara.
− Nossa, Vovó, nós só pedimos um balanço e uma casinha de bonecas! – disse Tico. – É pouca coisa e custa barato.
− Barato para quem não trabalha e não sabe o quanto de esforço custa para pagar as coisas. – afirmou Vovó. – Hoje, para vocês que são crianças, tudo parece fácil, mas quando crescerem e começarem a receber salários, vão descobrir que não podemos comprar tudo o que queremos.
Tico continuou:
− Depois, nunca ouvi dizer que, para comprar algo, era preciso arrancar os olhos para pagar!
Ao ouvirem essa asneirinha inocente, todos começaram a rir, até Bebel, que não tinha entendido a razão da risada, mas riu também.
− Vamos parar de discutir. – completou Papai. – Primeiro eu vou passar no banco para ver quanto podemos gastar. E deixe-me ir trabalhar, porque já estou ficando atrasado para a aula.
III
Na sexta-feira seguinte à mudança, logo depois do almoço, uma caminhonete parou em frente à casa nova para entregar o material que Papai havia encomendado a uma loja de madeiras e ferragens. Havia madeiras e tela para o galinheiro, pregos, martelo, serrote, enxadinha para o jardim, adubo e sementes para a horta vertical. Também chegou material para a construção do balanço das crianças e mudas de roseiras para o jardim da Mamãe. Tico e Bebel, mais do que ninguém, esperavam ansiosos para que chegasse o sábado, quando Papai iniciaria as obras no quintal.
No dia seguinte, mal amanheceu e as crianças foram acordar Papai para que começasse o trabalho. Ele, sorrindo, aprontou-se rapidamente e nem tomou café-da-manhã. Um pouco antes do meio-dia, o galinheiro estava pronto, só faltando os franguinhos, que seriam comprados no domingo, no Mercado Municipal. Enquanto Papai fazia o galinheiro, Mamãe e Vovó ficaram cortando as garrafas plásticas de refrigerante para fazerem a horta vertical. Encheram as garrafas preparadas com terra e adubo, e semearam salsinha, cebolinha, coentro, orégano, manjericão, alface, couve e tomates cereja. Em cada garrafa, colocaram um pauzinho com o nome da planta que semearam, para não se confundirem mais tarde. Após prenderem as garrafas no muro do quintal, regaram com cuidado para a terra não transbordar e perder-se terra e sementes. Ao terminarem, foram preparar o almoço.
Depois do almoço, sob protestos das crianças, Papai foi tirar uma sesta, para só mais tarde fazer o balanço. Assim que terminou o seu descanso, Papai foi trabalhar na construção do balanço e, quando terminou, já estava escurecendo. Mesmo quase não enxergando mais nada por falta de iluminação no quintal, Tico e Bebel foram se revezando no balanço, cada um achando que o outro havia errado na contagem do tempo para dar a vez ao outro. Já estava escuro quando Mamãe os chamou para tomar banho antes do jantar.
No domingo, todos foram ao Mercado Municipal para comprar os pintinhos e franguinhos. As crianças ficaram encantadas com os animais, querendo levar, além do combinado, perus, coelhos, cabritinhos, peixes e passarinhos. Fizeram tanta bagunça, que Papai quase desistiu das compras. Mamãe conseguiu acalmar os ânimos dos filhos e, por fim, compraram três galinhas ainda novas e um frango. Vovó comprou com seu dinheiro um peru, pois queria comemorar a compra da casa com um almoço muito especial.
Ao chegarem em casa, as aves foram colocadas no galinheiro. Bebel e Tico ficaram dentro do galinheiro a tarde toda, brincando com os novos animais, esquecendo-se completamente do balanço. Somente após alguns dias, acostumados com as aves, eles passaram a se balançar frequentemente.
IV
Após alguns dias, Vovó pediu ao Papai para trazer uma garrafa de pinga, pois queria preparar o almoço no próximo domingo. As crianças nem entenderam o que Vovó dizia ao filho e, por isso, não deram atenção a esse pedido.
No sábado de manhã, Vovó entrou no galinheiro segurou com Papai o peru e, com a ajuda de um funil colocado na boca da ave, começou a despejar a pinga goela abaixo. Tico e Bebel olhavam com curiosidade o que os dois estavam fazendo. Quando terminaram de derramar a pinga na boca do peru, eles o soltaram. O pobrezinho saiu correndo pelo galinheiro, mal conseguindo manter-se em pé. Estava completamente bêbado. As crianças, vendo o peru cambaleando, caíram na gargalhada, entraram no galinheiro para brincar com ele, divertindo-se a valer.
Quando, na manhã do domingo, Vovó abateu o peru para assá-lo para o almoço, a consternação das crianças foi enorme. Tico e Bebel choraram muito, negaram-se a comer o peru, ficaram de mal com Vovó e não quiseram conversar nem com os pais. Na hora do almoço, tristes e chorosos, sentaram-se à mesa em total silêncio. Os adultos olhavam-se, sem saber como lidar com as crianças. Entendiam a tristeza das crianças e, por isso, não a repreendiam. Mamãe preparou o prato dos filhos, inclusive com as partes que elas gostavam nos frangos, asa para Bebel e coxa para Tico. Aos poucos, que elas gostavam nos frangos, asa para Bebel e coxa para Tico. Aos poucos, as fungadas que Tico e Bebel faziam foi-se atenuando, diminuindo e os dois foram sentindo o cheiro delicioso que o peru assado emitia. O choro cessou, eles começaram a beliscar a comida e, de cabeça ainda baixa, olharam um para o outro e, em cumplicidade, foram cortando aos poucos a carne do peru e comendo, primeiramente pequenos pedaços e, após saboreá-los, com vontade. Acabando de comer o pedaço da ave que lhes coube, pediram mais, agora já sorrindo.
Papai caiu na gargalhada, sem que os filhos entendessem, e comentou com Mamãe e Vovó:
— Lembrei-me agora da Tia Anastácia, quando Miss Sardine mergulhou na frigideira com óleo fervente, pensando ser uma piscina e morreu fritinha. Tia Anastácia chorou muito com pena da pobrezinha, mas quando sentiu o cheiro da sardinha frita, sentiu água na boca, beliscou um pedacinho e o comeu. Estava tão gostosa que comeu todo o peixe.
Mamãe e Vovó, que conheciam bem a obra de Monteiro Lobato, sabiam que Papai se referia a uma história que estava nas Reinações de Narizinho, e começaram rir também. Bebel e Tico continuaram a comer o peru, sem entenderem porque os adultos riam. Às vezes os adultos são tão bobos, pensaram consigo.
V
A primeira pessoa a ver os ovos no galinheiro foi o Tico. Era muito cedo e todos estavam dormindo. Papai, Mamãe e Vovó, assustados, foram correndo ver qual a razão da gritaria do menino. A única que não acordou foi Bebel. E quando acordou, ficou muito brava porque não a chamaram.
Aos poucos, a casa foi sendo organizada. Depois de arrumar a casa, Mamãe ia cuidar de seu jardim. As mudas vingaram e alguns botões começaram a nascer em suas roseiras. A grama que ela tinha plantado em volta das roseiras estava começando a se espalhar e Mamãe a ia podando, transplantando mudinhas para algum espaço mais vazio, tendo o cuidado de não deixar que ficasse muito próxima dos pés de rosa para não sufocá-los. Vovó cuidava da horta vertical todos os dias, alegrando-se com cada semente que germinava e arrancando as ervas daninhas conforme as ia reconhecendo. As verduras e os temperos a cada dia ficavam mais fortes e bonitos. Papai geralmente, quando estava em casa, estava voltado para os seus livros, estudando e preparando suas aulas. Bebel, quando não estava na escola ou fazendo as lições de casa, andava por todo lado com sua boneca de louça ao colo, um presente da Vovó, e adorava ficar com ela no balanço. Tico ficava horas dando comida para as galinhas ou simplesmente olhando para os ovos, à espera que nascessem os pintinhos.
Quando os pintinhos nasceram, foi uma festa! As crianças viviam dentro do galinheiro, com os pintinhos no colo. Vovó dizia-lhes que não deviam ficar com eles no colo, senão não cresceriam. Mas rapidamente cresceram. Quando um franguinho chegou a uma idade adulta, o galo que haviam comprado ao se mudarem para a casa, começou a brigar com o mais novo, machucando-o bastante. Vovó disse a Papai que precisava matar um dos dois, pois no galinheiro só podia ter um galo.
Tico e Bebel estavam no quintal e ouviram o que Vovó comentara com o filho e ficaram angustiados, lembrando-se do peru que Vovó havia matado. Precisavam fazer alguma coisa.
— O galo é muito lindo e forte — disse Vovó, ainda conversando com Papai. Melhor é matar o mais jovem. Já tem carne suficiente para assá-lo.
Vovó, em seguida, foi caminhando para o galinheiro. As crianças correram e entraram no galinheiro antes dela. Pegaram o frango no colo e se colocaram o mais distante da porta que lhes foi possível, naquele espaço tão reduzido. Vovó pensou que os netos haviam pego o franguinho para ela matar, mas, ao entrar no galinheiro, as crianças gritaram:
— Vai embora! Assassina! A senhora não vai matar nada aqui!
E não pararam de gritar até que a Vovó saiu do galinheiro. Papai tentou fazer com que os filhos saíssem dali e entregassem o frango para Vovó, mas foi inútil. Somente muito tempo depois as crianças saíram do galinheiro, quando sentiram que o franguinho estava seguro, pois tanto Vovó quanto Papai haviam entrado. As crianças conseguiram livrar o franguinho de seu destino tão cruel, mas somente naquele dia.
VI
Em uma manhã de muito sol, Tico foi, como de costume, direto para o galinheiro, levando milho e cascas de legumes que Mamãe tinha guardado do jantar, e água fresca. Antes de chegar ao galinheiro, ouviu de longe vários piados e viu pintinhos amarelinhos andando atrás da galinha-mãe e ciscando o chão. O menino ficou paralisado de contentamento. Havia mais uma ninhada. Os pintinhos tão pequeninos moviam-se rapidamente e não paravam de seguir a mãe.
Quando olhou para um cantinho do galinheiro, viu um pintinho parado, piando baixinho, parecendo assustado. Ao contrário dos outros, esse pintinho não corria atrás da mãe. Tico entrou no galinheiro e, sem dificuldade, pegou o pintinho acuado no colo.
Vovó apareceu no quintal, pois tinha escutado os pios e, muito feliz, foi chamar o resto da família. Quando chegaram perto do galinheiro para verem os filhotinhos, Tico mostrou para a avó o pintinho que estava quietinho, parecendo doente. Pegando o pintinho nas mãos, Vovó o examinou, olhou todo o seu corpinho à procura de algum problema, mas nada encontrou. Quando aproximou o dedo dos olhos do bichinho, ele não teve nenhuma reação. Ela, então constatou:
− Ele nasceu cego!
Todos ficaram tristes por causa da cegueira do pintinho. Bebel encostou a cabeça no corpo da mãe e começou a chorar.
− O melhor que podemos fazer – disse Vovó – é matar o pobrezinho. Dessa forma ele não sofrerá nem morrerá de fome, de calor ou de frio.
− Não! – gritou o menino, pegando o pintinho das mãos da avó, pondo-se também a chorar, enquanto Bebel chorava ainda mais. Papai aproximou-se da esposa e a abraçou junto com a filha. – Ninguém vai matar o meu pintinho.
− Mas meu filho, − disse Papai, aproximando-se do Tico e agachando para olhar para ele, que estava chorando de cabeça baixa, com o pintinho – será melhor para ele. Um pintinho cego nunca vai conseguir sobreviver sozinho. Olha para a mãe dele... nem liga para ele, não lhe dá atenção nem comida. Se a gente o matar agora, sem dor, ele não vai ficar sofrendo. Eu sei que é duro para você, mas ele vai morrer de qualquer forma em breve.
− Não! – chorava o menino. – Vocês não podem fazer isso. Eu não vou deixar. Eu mesmo vou cuidar dele até que ele cresça.
Tico correu para dentro de casa com seu pintinho e se trancou no banheiro. Dava para ouvir o menino soluçando e dizendo ao seu ceguinho:
− Não fique com medo, porque eu vou cuidar de você! Ninguém vai lhe fazer nenhum mal! Eu vou cuidar sozinho de você. Só eu!
Encolhido, tremendo na palma da mão do Tico, o pintinho cego piava, baixinho, triste.
VII
Tico passou a dedicar todo o seu tempo livre para cuidar do seu pintinho que tinha nascido cego. Percebeu que, sozinho, o bichinho não conseguia se alimentar. Às vezes, encontrava-o ciscando à procura de algo para comer. O menino pegava-o na mão e lhe dava alguns grãos de quirera, que o pintinho comia com muita vontade. Ficava horas a alimentá-lo.
Depois de algum tempo, o pintinho já tinha se afeiçoado ao seu protetor de tal forma que, quando Tico chegava da escola e corria para o galinheiro, o ceguinho corria, tateando pelo terreno, fazendo festa com pios para o menino. E quando Tico o chamava, vinha com alegria, reconhecendo a sua voz.
Bebel foi, certa manhã em que Tico havia saído com o pai, alimentar as galinhas e acabou esquecendo o portão do galinheiro aberto. Sem que percebesse, o pintinho cego fugiu.
Quando Tico chegou, logo deu por falta do pintinho. Gritando de desespero, o menino fez com que todos da casa saíssem à procura do ceguinho desaparecido, conseguindo ajuda até de alguns vizinhos, que ouviram seus gritos. A procura durou horas, até que o encontraram num terreno baldio, perto da casa, tonto e com frio, sem condições de voltar, pois, com o caminho sempre escuro para ele, isso era impossível.
O menino brigou muito com a irmã, por ela ter sido tão imprudente e, para que não mais acontecesse incidente igual, construiu uma casinha de palha para proteger o pintinho e passou a dedicar ainda mais tempo e carinho a ele, para lhe dar paciência e esperença, pois sabia que um futuro mais escuro o esperava.
VIII
De todos os pintinhos daquela ninhada, o ceguinho era o mais bonito e forte. Estava crescendo e somente quando Tico estava por perto é que ele era solto de sua casinha, pois o menino não confiava em mais ninguém para cuidar do seu pintinho desde o dia em que ele tinha escapado e se perdido.
O Natal estava se aproximando e o Tico saiu com os pais e a irmã para fazerem compras. Vovó ficou em casa cuidando da sua horta vertical que estava muito bonito, sendo admirado pelos vizinhos. Quando ela foi ao quintal dar alimento às galinhas, percebeu que o pintinho cego estava piando muito. Pensou que talvez o bichinho estivesse com calor e resolveu soltá-lo um pouco no quintal para que se refrescasse. E ficou cuidando dele.
Mas, daí a pouco, tocaram a campainha e Vovó foi atender. Era um vendedor já seu conhecido e os dois ficaram conversando, o que fez com que ela se esquecesse do pintinho solto no quintal.
O ceguinho começou a andar por todo o quintal, conseguindo alcançar o jardim da casa. Quando Vovó percebeu, já era tarde. O pintinho cego estava na rua e um carro não reparou nele. Vovó deu um grito, mas nada pode fazer.
IX
Tico chegou em casa e correu para o quintal, feliz, para levar de presente de Natal para o seu pintinho um saquinho de ração especial que, segundo o vendedor tinha informado, deixava os frangos mais fortes. Chegou chamando pelo ceguinho, mas não houve resposta. Abriu a casinha de palha e nada encontrou.
O menino já estava desesperado e, quando saiu para chamar a família para ajudá-lo a procurar o pintinho, trombou com o pai, que já sabia de toda a história.
− O pintinho, Papai... sumiu! Vamos chamar todo mundo para procurar.
Papai olhou para o filho, agachou-se para ficar face a face com ele, e disse, com expressão muito triste:
− Filho, eu quero falar com você.
Tico, pressentindo que alguma coisa estava acontecendo, não quis ouvir.
− Depois, Papai, primeiro a gente tem que procurar e achar o meu ceguinho antes que seja tarde.
Uma lágrima escorreu dos olhos do pai, que falou:
− Já é tarde. Tico. O seu pintinho não existe mais.
− Não! – gritou o menino, começando a chorar. – Não é verdade! Ele está perdido como da outra vez. Por favor, Papai, me ajuda a procurar o meu ceguinho.
− Tico, meu filho, o seu pintinho morreu. Ele fugiu e um carro o atropelou. Não podemos fazer mais nada. Eu sinto muito, filho, muito mesmo!
E Tico chorou, chorou muito, de pena e saudade do seu pintinho cego que, apesar de nunca ter enxergado, o conhecia e vinha feliz ao ouvir a sua voz.
X
Dia de Natal.
A casa estava triste. Ninguém poderia imaginar que um pobre pintinho cego pudesse provocar tanta tristeza na família.
Vovó, toda vez que olhava para o Tico, pedia-lhe desculpas por ter sido a causadora da morte do pintinho. Mas o menino não a culpava, pois sabia que ela não tinha soltado o pintinho por mal, ao contrário, tinha sido por amor a ele que ela o tinha soltado.
Papai tinha saído à tarde para comprar alguma coisa que, segundo ele, ia melhorar o ânimo de todos da casa. Já tinha passado uma semana desde o incidente com o pintinho e Papai ainda vai todos tristes, principalmente o Tico.
Ele chegou quando já estava escurecendo, com um cesto nas mãos e não deixou que ninguém visse o que havia dentro, até chegar a hora de entregar os presentes de Natal. Embora ninguém soubesse o que Papai tinha trazido, a curiosidade animou a família, que já sorria imaginando o que era.
Quando chegou a hora da entrega dos presentes, todos se abraçaram pelo aniversário de nascimento de Jesus, cantaram “Noite Feliz” e, em seguida, começaram a abrir os presentes que estavam debaixo da árvore da Natal. Papai deixou a surpresa por último. Foi até o quarto e, quando voltou, disse:
− É um presente para toda a família, mas de maneira especial para o meu filho, que perdeu algo muito querido a pouco tempo.
Por um momento, todos ficaram em silêncio, lembrando o pintinho cego morto. Tico começou a chorar baixinho. Papai entregou ao filho o presente e quando tirou o pano que o cobria, apareceu a cabeça de um cachorrinho pequinês, que não é outro senão EU!
Todos gritaram de felicidade e admiração por aquele presente tão lindo e tão vivo. Todos, menos o Tico.
− O que houve? – perguntou Mamãe. – Não gostou do presente?
E pegando-me no colo disse ao filho:
− Veja que gracinha! E é seu!
Tico, cabisbaixo, falou à mãe:
− Eu gostei... mas eu não queria mais nenhum bichinho, porque quando eles morrem, a gente sofre muito. E eu nunca vou esquecer do meu ceguinho.
− Ninguém está pedindo para você esquecer do seu pintinho cego. Nós também vamos sempre nos lembrar dele pela lição de amor e dedicação que você e ele nos ensinaram.
− Pegue o cachorrinho! – pediu Papai. – Brinque com ele e você vai ver como ele é bonzinho e precisa de um amigo que cuide dele.
Tico respondeu:
− Eu não sei... acho que nunca mais eu vou amar outro bichinho!
− Tente! – falou Vovó.
Tico ainda demorou um pouco até se decidir me pegar no colo. Mas quando me pegou, não conseguiu mais me largar.
XI
Já era muito tarde quando todos foram dormir. Tico e Bebel me colocaram no cesto para dormir e cada um me deu um beijo.
O menino estava na cama quando se lembrou de algo. Foi até o quarto dos pais e chamou:
− Papai?
− O que há, filho? Algum problema?
− Não. Eu só queria dizer muito obrigado pelo Pirilampo.
− Quem? – perguntou Papai, sem entender sobre quem o Tico estava falando.
− O cachorrinho. Foi o nome que eu coloquei nele em sua homenagem. Você não disse uma vez que teve um cachorrinho com esse nome quando era criança?
− Sim, é verdade. Foi uma ótima escolha. Obrigado!
Tico deu um beijo no pai. No quarto, ele chegou perto do meu cesto para ver se eu estava bem, me fez um carinho longo e, por fim, me disse:
− Eu amo você, Pirilampo!
FIM
O PINTINHO CEGO
Poema de Olegário Mariano
É ridículo, não nego:
Mas como me comovia
Aquele pintinho cego
Que eu criava e não me via.
O meu cuidado primeiro,
Quando cansado chegava,
Era indagar do caseiro
Meu ceguinho como estava.
E ele que vivia a sós,
Num momento aparecia.
Certamente conhecia
O timbre[1] da minha voz.
Vinha vindo e tateando
Pela grama do jardim.
Abaixava-se piando
A esperar com alegria
A festa que eu lhe fazia
Quando o tinha junto a mim.
Uma vez... (se bem me lembro
Era o mês de dezembro)
Pus a criadagem tonta...
Ninguém dele dava conta.
Fiquei louco, furibundo[2],
Pus em campo todo mundo,
Gente corria assustada
Pelo jardim, pela estrada,
Até que o acharam com frio,
Longe, num campo baldio,
Tonto, sem poder voltar.
O seu caminho de volta
Era escuro e misterioso
Como uma noite sem luar.
Então resolvi prendê-lo:
Fiz-lhe uma casa de palha
E a todo instante ia vê-lo.
Desse modo procurava
Dar-lhe paciência e esperança
Enquanto ele era criança,
Para aguardar o futuro
Mais escuro que o esperava.
Mas o destino, na trama[3]
Como a aranha o prendeu.
O caseiro resolveu
Soltá-lo um pouco na grama...
E ele desapareceu.
Quando no fim de semana
Voltei à minha choupana[4]...
Vinha feliz! Mal sabia
Que ele não mais existia.
E me acreditem, não nego,
Chorei com pena e saudade
Daquele pintinho cego
Que não via a claridade
Do sol que ilumina o dia,
Que dá vida a todos nós,
E entanto me conhecia
E era feliz quando ouvia
O timbre da minha voz.
(In: Poesia Brasileira para a Infância)
[1] TIMBRE: som.
[2] FURIBUNDO: furioso; com raiva; com ódio.
[3] TRAMA: teia.
[4] CHOUPANA: cabana, casa simples.
A HISTÓRIA DESTA HISTÓRIA
O poema “O Pintinho Cego”, de Olegário Mariano, sempre me comoveu. Eu o li em um livro grande, de capa dura, chamado Poesia Brasileira para a Infância, que havia na biblioteca na casa de meus pais. Talvez o poema tenha me emocionado e cativado, pois eu também tive uma experiência com um pintinho que morreu.
Eu era pequeno, talvez 6, 7 ou 8 anos, não me lembro, mas ganhei de minha mãe, se não me engano comprado na feira, um pintinho amarelinho. Dois dos meus irmãos mais velhos do que eu também ganharam. O meu era o menor dos três, todo amarelinho, a mesma cor do deles.
Certa noite, sexta-feira ou sábado, como gostava de fazer, meu pai levou a família para jantar em um restaurante. Choveu muito aquela noite e, quando chegamos em casa, os três irmãos fomos ver se os nossos pintinhos estavam bem. A chuva os atingira diretamente e nós os encontramos molhados e meio que desacordados.
No quintal havia o que nós chamávamos de Quartinho, um cômodo onde havia a máquina de lavar roupa, a mesa e o ferro de passar, além de outros materiais ali guardados. Pegamos alguns panos e os passamos a ferro para ficarem quentes e, com eles, cobrimos os nossos pintinhos, deixando-os em cima da mesa. E fomos para dentro de casa dormir.
Na manhã seguinte, fomos ver como estavam os bichinhos. Encontramos os dois dos meus irmãos vivos, andando sobre a mesa e piando muito. Olhei o meu. Estava ainda debaixo do pano, sem se mexer. Morto.
Nessa época eu ainda dormia no quarto com meus pais. Fui para o quarto, fechei a porta e olhando o céu pela janela, comecei a chorar. Creio que essa foi a primeira experiência de morte que eu senti, que eu entendi a dor da separação para sempre.
Em uma anotação que tenho até hoje, eu escrevi no dia 21 de maio de 1985:
“Não me lembro com precisão quando surgiu a idéia de adaptar a poesia homônima de Olegário Mariano. Deve ter sido em 1975 ou 1976. O fato é que escrevi uma versão em 1976 e outra em 1980, (...)”
No dia 2º de maio de 1985, escrevi uma nova versão, ampliada e bem modificada em relação à primeira, sobre a qual escrevi entre parênteses sob o título: (Livre adaptação em prosa da poesia de Olegário Mariano).
Quase trinta e quatro anos depois, estando em férias em São Paulo, para onde vim comemorar meus 60 anos de vida junto à minha família e dedicar o máximo de tempo possível à leitura e à escrita, estando com diversos textos antigos em mãos, encontrei as primeira e a última versão da adaptação em prosa que eu havia feito.
Comecei a ler e gostei do que estava escrito. E resolvi digitar o último texto, para tê-lo no computador. Porém, enquanto estava digitando, fui fazendo uma série de alterações que acabo de terminar.
Não sei se é a história em si, ou a lembrança infantil do meu pintinho morto, ou porque estou ficando velho e mais emotivo, enquanto eu escrevia o final da história com a morte do pintinho cego, comecei a chorar. E chorei novamente na cena do Natal.
E aqui está a versão (por hora) definitiva dessa história.
Nel Cândido
14 de janeiro de 2019
Hoje, ouvindo a história de uma amiga, Nina, passada na sua infância, acrescentei a esta história duas narrativas, a do peru e a do franguinho que seria morto. Ri muito quando contou-me que chamou de “assassina” à pessoa que mataria a galinha para comerem.
05 de julho de 2022
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